domingo, 28 de setembro de 2008

I Believe I Can Fly (IV) by LD


Antes de mais nada peço desculpa pelo meu atraso, mas a minha vida tem sido agitada nos últimos tempos. Aqui vai...


Li, no Público de Sábado, que o nosso Presidente Aníbal Cavaco Silva voltou (em menos de um mês) a dar indicações ao Governo acerca do Orçamento de Estado, isto depois de, aquando da sua visita à Polónia, ter "pedido" uma maior verba do orçamento para o campo diplomático e rede de consulados (forma de potenciar relações internacionais mais "íntimas" e saudáveis). Desta feita, em Nova Iorque, o sr. Presidente "pediu" mais verbas para as famílias carenciadas.

Ora, nesta notícia há algumas coisas que me preocupam. Analisemo-la primeiro segundo um ponto de vista jurídico (não se trata de averiguar a constitucionalidade de tais declarações, pois essa questão nem se coloca, mas sim de demonstrar que o Presidente não tem qualquer competência legislativa, muito menos que se relacione com o Orçamento de Estado):


- primeiro, o art. 110º da CRP, no seu nº2, diz-nos que as competências dos órgãos de soberania estão tipificadas na Constituição e que são portanto de ordem pública, não podendo por isso, ser transmitidas, nem reguladas pelo legislador ordinário (princípio da tipicidade das competências dos órgãos de soberania, princípio da intransmissibilidade ou indisponibilidade de competências dos órgãos de soberania e princípio de reserva de Constituição);


- segundo, em nenhuma parte do Título II (Presidente da República), Parte III (referente à organização do poder político) da CRP, está escrito que o Presidente tem competências legislativas, e porque assim é, ele não as tem mesmo. As suas competências são exclusivamente políticas e diplomáticas e apesar de participar no processo legislativo através do instituto da promulgação/veto (uma concretização do princípio da separação e interdependência de poderes, enunciado nos arts. 2º e 111º da CRP), ele não tem qualquer competência legislativa;


- terceiro, sendo o Orçamento de Estado o principal elemento de definição e delimitação das políticas do Executivo ou Governo, faz todo o sentido que seja este a elaborá-lo (exclusivamente). Porém, tratando-se de diploma tão importante para a vida de toda a comunidade, faz também todo o sentido que seja o órgão representativo paradigmático (a Assembleia da República) a aprová-lo (não esquecer que a proposta de lei, partirá sempre do Governo, obviamente). E é isso que nos diz a Constituição no art. 161º alínea g, « Compete à Assembleia da República: [...] g) Aprovar as leis das grandes opções dos planos nacionais e o Orçamento do Estado, sob proposta do Governo »;


- Portanto, tem o Presidente competências que lhe permitam participar no processo de elaboração do Orçamento de Estado? Não! Têm então os seus "pedidos"/"chamadas de atenção"/indicações algum valor jurídico no processo? Não! Preocupa-me então que o Presidente dê estas indicações.


Analisemo-la agora de um ponto de vista político:


- primeiro, o sr. Cavaco Silva, enquanto Presidente, deve promover um clima de unidade, estabilidade e compreensão políticas e isso implica evitar declarações destas (repetidamente), sem aparente razão de ser - com declarações deste teor não estará o Presidente a fazer "oposição"?, indicações aqui e ali, façam melhor, devem investir mais aqui, etc. ...;


- segundo, sendo este o principal instrumento do Governo, o sr. Presidente não deveria fazer "pedidos" nem dar indicações, pois dessa forma estará a pressionar politicamente outro órgão de soberania e a interferir no seu principal elemento de trabalho, limitando-o - onde pára a separação de poderes?;


- terceiro, se pretende fazer uso das suas concepções individuais e políticas, então vete a lei do Orçamento (aqui, do ponto de vista jurídico, fazendo uso do art.136º da CRP), coisa que me parece pouco sensata, uma vez que aquando da etapa de promulgação ou veto, já a dita lei terá passado pelo Governo e pela Assembleia - fará sentido o Presidente não aprovar aquilo que foi aprovado por outros dois órgãos soberanos (um dos quais com legitimidade democrática directa)?, e não estará dessa forma o Presidente a limitar outro órgão de soberania? Ainda assim, do ponto de vista jurídico, poderia fazê-lo;


- quarto, é, quanto a mim, realmente infeliz o facto de, no estrangeiro, o nosso Presidente fazer "chamadas de atenção" ao Executivo - não será esta uma forma de exercer maior pressão política?, pensará quem está lá fora que o nosso Executivo é irresponsável e que o Presidente tem de o chamar à atenção, pedir-lhe que seja mais atencioso em certos aspectos?.




- Concluindo, o Presidente da República não tem competência para participar na feitura do Orçamento de Estado, por isso, os seus "pedidos" são irrelevantes do ponto de vista jurídico nesse processo (não vinculam, quanto muito podem ser persuasivos). Não obstante, políticamente estas declarações podem ter algum peso, podendo mesmo pressionar o Executivo e isso vai contra a separação de poderes. Políticamente, estas declarações parecem-me condenáveis - a não repetir!



PS - Atenção, eu não estou aqui a defender que o Presidente não deve ser interventivo. Sou inclusive da opinião que o deve ser, mas de acordo com as suas competências, constitucionalmente tipificadas. Deve vetar políticamente quando o achar conveniente (exige lucidez e responsabilidade), deve fazer uso do seu direito de requerer fiscalização preventiva e abstracta da constitucionalidade (no Tribunal Constitucional), deve promulgar, etc. . Deve também comentar acontecimentos marcantes, deve tranquilizar o país ou alertá-lo, todavia não deve comentar opções que não lhe cabem a ele e não deve "limitar", ainda que apenas políticamente (com comentários ou com o uso irresponsável do veto político), outros órgãos soberanos, a não ser nos moldes constitucionalmente estabelecidos
(concretização do princípio da separação e interdependência de poderes).


LD

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